O noticiário econômico tem assustado os locadores com a “recuperação judicial” de enormes redes varejistas. Uma delas até já avisou que não pagará os aluguéis atrasados (Estadão, 11/02/23 p. B14). A questão é grave: a mesma notícia mencionou que um dos shoppings seria credor de aluguéis na monta de R$ 2,6 milhões, o que há de ferir as suas contas.
Mas, nesses casos, ainda estamos na fase da “recuperação judicial” e se imagina (esta é a meta da lei) que os débitos serão pagos, mesmo que com atraso e abates.
Afinal, como dizia o professor de muitos de nós, Luiz Tzirulnik, na história da insolvência, apesar do caráter punitivo que permeava o decreto de falência, sempre existiu alguma preocupação com a possibilidade de propiciar-se recuperação ao devedor em crise.
Veja-se, a “recuperação judicial” consiste na aplicação de remédios (previstos na lei) que combatam logo os primeiros sintomas da doença econômico-financeira que acometeu a empresa, de modo que ela seja preservada e se recupere saudavelmente.
Obviamente, em termos práticos, se detecta o problema e se vislumbra o intento efetivo e a possibilidade de a empresa pagar as dívidas. Não por outra razão, um dos comercialistas mais lidos no Brasil, Miranda Valverde, ensinava que a “concordata” (benefício que a lei anterior propiciava, à semelhança da atual “recuperação judicial” que tem escopo mais profundo) deveria ser concedida apenas “ao devedor infeliz e de boa-fé”. Ou seja, que ao menos haja a declaração do devedor: “devo, não nego, pagarei quando puder”; pois, se além de sem dinheiro, sequer pretender pagar, as coisas ficarão muito complicadas…
Já a “falência” retrata a “situação de crise financeira (ausência de dinheiro) e de crise econômica insolúvel (impossibilidade de manter um giro empresarial lucrativo)” na síntese simples e perfeita do professor cuja citação também é indispensável, Manoel Justino Bezerra Filho, o que não impede que a quebra seja decretada por questões outras, também.
A lei, otimista, deixou no passado o conceito antiquíssimo, de que “falliti sunt fraudatores”, já não se enxerga a insolvência como engodo aos credores. De modo geral, evidentemente.
E é analisando a lei das recuperações judiciais e falências, a evolução doutrinária, bem como a lei das locações, que é possível alcançar as seguintes conclusões, quanto ao impacto da “recuperação judicial” e/ou da “falência”, em relação ao aluguel.
Pois bem. Durante a “recuperação judicial”, os aluguéis deverão ser pagos regularmente e nada impedirá a promoção ou o prosseguimento da ação de despejo em face da empresa locatária, com base na falta de pagamento dos aluguéis. Diga-se, a lógica se aplica também às ações de despejo por “denúncia vazia” ou por denúncia motivada.
Em poucas palavras: o princípio da preservação da empresa (que vige e tem extrema relevância) não limita o direito de propriedade e o seu exercício pelo locador. A base para o exercício do direito de propriedade está no art. 5º “caput” e inciso XXII da Constituição Federal, que a ele volta ao tratar da ordem econômica, no art. 170 inciso II. No art. 1.228, do Código Civil, se encontrará o que pode o proprietário (usar, gozar etc.) e essas referências se fazem para que assertiva alguma fique no ar…
Interessará, devido à gravidade da situação em que muitos poderão se encontrar, destacar boa jurisprudência: (i) STJ – AgRg no CC 145.517/RS, Rel. Ministro Moura Ribeiro, 22/06/2016; (ii) TJSP, Apel. Cível 1016542-37.2021.8.26.0068; Relatora: Maria de Lourdes Lopez Gil, 17/01/2023; (iii) TJSP, Apel. Cível 1113372-71.2018.8.26.0100; Relator Cesar Luiz de Almeida, 11/06/2019; todas dispondo sobre a possibilidade do despejo em caso de recuperação judicial (iv) TJSP, Agravo 990093439328 SP, Relator: Luís de Carvalho, 03/02/2010, julgado que proclamou: “A medida executiva do despejo não se confunde com eventual execução de valores relativos a aluguéis” e admitiu o desalijo.
Cuidado: pode, sim, ser promovida a ação de despejo contra a empresa locatária em recuperação. Essa ação não tramitará no Juízo da Recuperação (o confirma a jurisprudência); será livremente distribuída e, certamente, poderá se concretizar esse despejo. Porém, os créditos acumulados antes da Recuperação deverão ser habilitados, de modo que o recebimento desses aluguéis inadimplidos se sujeitará ao plano de recuperação. Aliás, isto indica que a desídia ou a leniência na cobrança, a concessão de crédito desmesurado, acarretam prejuízos seríssimos ao Locador.
Por fim, uma constatação talvez amaine o desconsolo de alguns: a responsabilidade dos fiadores da locação remanescerá. É a previsão do parágrafo 1º, do art. 49, da Lei 11.101/2005.
Mas, e quando for decretada a “falência”, não houver dinheiro nem viabilidade de obtê-lo?
Quanto aos aluguéis e encargos vencidos: restará ao credor locador habilitar-se pela soma devida; ele integrará o quadro de credores e receberá conforme a ordem legal. Quanto aos aluguéis que vencerem após a decretação da falência, o locador poderá promover ação de despejo, nada impondo que ele se quede imobilizado. Pensar de outra forma redundaria na imposição de um dano maior ao locador, quase eterno.
Não é somente isso: falido o locatário, poderá o administrador judicial resilir o contrato quando entender conveniente; e, de seu lado, o locador poderá interpelar o “administrador judicial”, para saber do interesse no prosseguimento da locação, situação que pode parecer rara, mas é possível. A regra está na Lei das Recuperações, art. 119: “a falência do locador não resolve o contrato de locação e, na falência do locatário, o administrador judicial pode, a qualquer tempo, denunciar o contrato”.
Seja como for, aluguéis deverão ser pagos e o inadimplemento permitirá a promoção da ação de despejo. Talvez com alguns percalços, mas a ação será possível e o despejo deverá ocorrer.
(Atigo publicado no site www.imobireport.com.br, em 27 de Março de 2023).
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