Como isso impacta as decisões do planejamento patrimonial sucessório
Em uma série de artigos sobre planejamento patrimonial sucessório seria inconcebível não tratar de uma realidade cada vez mais presente nas famílias brasileiras: núcleos diversos convivendo conjuntamente. É cada vez mais comum casais se formarem advindos de segundas relações (segundos casamentos), com cada cônjuge trazendo ao novo sistema seus filhos e filhas das relações anteriores.
As hipóteses são inúmeras: às vezes, é o segundo casamento de um, e o primeiro do outro; às vezes, ambos têm filhos, às vezes não; às vezes, não são filhos biológicos, mas de “coração”; e assim por diante!
Essas novas famílias precisam encaixar as pequenas peças (pessoas) construindo, pouco a pouco, a sua cultura familiar, que se espera ser bonita, feliz, saudável e perene. Para isto, cada vez que as peças se encaixarem, o desenho deve ser vistoso, agradável, acolhedor, tal como um mosaico.
Por outro lado, se a família não conseguir construir sua cultura, a consequência será um desenho feio, com rupturas, tendente e/ou na iminência de rachar. Conflitos surgirão!
Ajudei uma família, há alguns anos, que o patriarca tinha um enteado do casamento anterior e três filhos do casamento atual. Embora todos os filhos fossem maiores de idade e contassem com formação acadêmica, o único que trabalhava dia e noite na empresa de nutrientes animais era o enteado. Era também esse enteado que ia aos jogos de futebol e organizava o churrasco da família aos finais de semana.
O fundador da família, Sr. Jorge, “dono” da fábrica de nutrientes, queria que o enteado recebesse após a sua morte parte do seu patrimônio em iguais condições dos demais herdeiros. Me disse que o considerava um filho e, portanto, não haveria o porquê de fazer qualquer diferenciação.
Não é muito diferente do que observamos no famoso seriado americano[1] “Modern Family”, de Christopher Lloyd e Steven Levitan, no qual Jay Pritchett cuida do filho pré-adolescente de Gloria Delgado, o Manny. Aliás, nesta série outras facetas das famílias-mosaico são exploradas, como a união homoafetiva e a adoção de uma menina vietnamita, Lily.
Na verdade, o seriado reflete as atuais conjunturas familiares, abordando temas como divórcio, homoafetividade, adoção e socioafetividade, que em um passado não tão longínquo eram impensáveis ou escondidas nos “calabouços” de cada família.
Mas voltando ao Sr. Jorge, é possível reconhecer alguém sem laços de sangue como filho e ele ainda ter direito a herança[2]?
Existem, ao menos, três respostas:
A primeira possibilidade é a adoção[3], admissível para menores ou maiores de idade[4]; [5]. O instituto da adoção[6] confere aos adotantes os direitos e deveres de pais, já ao adotado, entre outros direitos, confere o direito à herança.
A segunda possibilidade é a utilização do testamento[7]. Não é necessário reconhecer a filiação através de adoção, e sim destinar parte ou total do patrimônio disponível ao enteado amado.
Por último, temos o reconhecimento da paternidade socioafetiva. É o reconhecimento jurídico de paternidade ou maternidade advindo de um dos mais belos sentimentos: o amor. Abre-se a possibilidade de uma pessoa ter dois pais e duas mães, não por sangue, lógico, mas sim por afeto.
A paternidade socioafetiva foi reconhecida no tema 622 de repercussão geral (RE 898.060 SC)[8], do Supremo Tribunal Federal[9], e, após, seguiram-se inúmeras decisões neste sentido nos tribunais pátrios[10]. A base legal estava na inteligência do artigo 1.593, do Código Civil[11], lido a partir dos princípios da dignidade da pessoa humana e da afetividade.
A maioria das decisões realça, basicamente, que a filiação socioafetiva ocorre quando as pessoas de determinada família convivem como pai/mãe e filho/filha, de forma pública e notória, nutrindo afeto mútuo, mesmo sem laços sanguíneos. É o amor!
O Prof. Zeno Veloso[12] leciona: “os vínculos biológicos, às vezes, cedem aos laços do amor, da convivência, da solidariedade, pois a voz do sangue nem sempre fala mais alto do que os apelos do coração”.
A multiplicidade parental[13]; [14] também confere o direito de uso do sobrenome, pensão alimentícia, inclusão do vínculo de filiação junto ao assento de nascimento, sem prejuízo daqueles já registrados e, como já dito, à herança[15];[16].
É certamente muito bonito, e na prática emociona, o planejamento em que há o pedido de reconhecimento de um enteado, primo, sobrinho ou mesmo de um amigo!
O único ponto negativo (sempre tem um) é a utilização do instituto de forma abusiva. Já existem casos em que o reconhecimento socioafetivo ocorreu após a morte do pai/mãe de coração, através de ação judicial. É uma pena, pois tais situações trazem patente insegurança jurídica para as famílias[17].
O reconhecimento deve ser natural, por amor e afeto, e não através de sentença judicial. Se não era a intenção do pai/mãe de coração o reconhecimento, então deve-se respeitar tal situação, ainda mais porque se já estão mortos (ou incapazes)[18] não poderão expressar suas reais intenções. Nem todo acolhimento e inclusão no seio familiar representa uma declaração de filiação.
Se no testamento o testador expressa suas últimas vontades, no reconhecimento socioafetivo o pai/mãe de coração reconhece a transmissão de sua cultura e afeto por quem ele/ela ama.
Sr. Jorge decidiu pelo reconhecimento de seu enteado. Se “Modern Family” não fosse ficção, tenho certeza de que Jay teria seguido o mesmo caminho com Manny. Sorte deles!
Para quem quiser saber mais, recomendo a série “Modern Family”, da 20th Century Fox Television.
[1] A série, que cogitou-se ser chamada de “Uma família americana”, passou por 11 temporadas, recebendo diversos prêmios Emmy.
[2] Art. 1.596, CC. Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.
[3] “A adoção, regulamentada pelos arts. 39 a 52 do Estatuto da Criança e do Adolescente, é o instituto que estabelece um vínculo de filiação por decisão judicial. Em outras palavras, o parentesco civil constituído pela filiação por adoção corresponderá a uma relação jurídica (ou seja, em que se estabelecem direitos e deveres recíprocos) análoga à do parentesco biológico, inclusive para fins sucessórios (art. 41, ECA), especialmente em se considerando a proibição de qualquer tipo de discriminação fundada na origem da filiação nos termos da Constituição Federal.” (ZAPATER, Maíra. Direito da criança e do Adolescente. Editora Saraiva, 2019. p. 117 e 118.)
[4] Art. 1.618, CC. A adoção de crianças e adolescentes será deferida na forma prevista pela Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente
[5] Art. 1.619, CC. A adoção de maiores de 18 (dezoito) anos dependerá da assistência efetiva do poder público e de sentença constitutiva, aplicando-se, no que couber, as regras gerais da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente
[6] Enunciado 05, IBDFAM – Na adoção, o princípio do superior interesse da criança e do adolescente deve prevalecer sobre a família extensa.
[7] Para saber mais sobre o tema, conferir o sétimo artigo desta série: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/patrimonio-morri-e-agora-23062022
[8] Tema 622 – A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios.
[9] “A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios”. […] o Tribunal de origem manifestou-se no sentido contrário ao entendimento do STF ao desconsiderar vínculo socioafetivo, em que pese indiscutível quadro probatório que confirmasse ter o falecido verdadeiro afeto pela recorrente, residindo sob o mesmo teto e arcando com todas as suas despesas básicas. (STF. ARE 940490/MG. Relator(a): Min. EDSON FACHIN. DJe, julgamento em 05/12/2016, publicação em 06/12/2016)
[10] RECURSO ESPECIAL. DIREITO CIVIL. AÇÃO DECLARATÓRIA DE PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE. TRATAMENTO JURÍDICO DIFERENCIADO. PAI BIOLÓGICO. PAI SOCIOAFETIVO. IMPOSSIBILIDADE. RECURSO PROVIDO.1. O Supremo Tribunal Federal, ao reconhecer, em sede de repercussão geral, a possibilidade da multiparentalidade, fixou a seguinte tese: “a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios” (RE 898060, Relator: LUIZ FUX, Tribunal Pleno, julgado em 21/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO REPERCUSSÃO GERAL – MÉRITO DJe-187 DIVULG 23-08-2017 PUBLIC 24-08-2017). 2. A possibilidade de cumulação da paternidade socioafetiva com a biológica contempla especialmente o princípio constitucional da igualdade dos filhos (art. 227, § 6º, da CF). Isso porque conferir “status” diferenciado entre o genitor biológico e o socioafetivo é, por consequência, conceber um tratamento desigual entre os filhos. 3. No caso dos autos, a instância de origem, apesar de reconhecer a multiparentalidade, em razão da ligação afetiva entre enteada e padrasto, determinou que, na certidão de nascimento, constasse o termo “pai socioafetivo”, e afastou a possibilidade de efeitos patrimoniais e sucessórios. 3.1. Ao assim decidir, a Corte estadual conferiu à recorrente uma posição filial inferior em relação aos demais descendentes do “genitor socioafetivo”, violando o disposto nos arts. 1.596 do CC/2002 e 20 da Lei n. 8.069/1990. 4. Recurso especial provido para reconhecer a equivalência de tratamento e dos efeitos jurídicos entre as paternidades biológica e socioafetiva na hipótese de multiparentalidade. (REsp n. 1.487.596/MG, Relator(a): Min. ANTONIO CARLOS FERREIRA, Quarta Turma, julgado em 28/9/2021, DJe de 1/10/2021.) (grifo nosso)
[11] Art. 1.593, CC. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.
[12] VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 180.
[13] Multiplicidade parental, ou multiparentalidade, é a possibilidade de reconhecimento concomitante da maternidade e/ou parentalidade biológica e socioafetiva.
[14] Enunciado 29, IBDFAM – Em havendo o reconhecimento da multiparentalidade, é possível a cumulação da parentalidade socioafetiva e da biológica no registro civil.
[15] Enunciado 06, IBDFAM – Do reconhecimento jurídico da filiação socioafetiva decorrem todos os direitos e deveres inerentes à autoridade parental.
[16] Enunciado 33, IBDFAM – O reconhecimento da filiação socioafetiva ou da multiparentalidade gera efeitos jurídicos sucessórios, sendo certo que o filho faz jus às heranças, assim como os genitores, de forma recíproca, bem como dos respectivos ascendentes e parentes, tanto por direito próprio como por representação.
[17] APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE MATERNIDADE POST MORTEM. MULTIPARENTALIDADE. Sentença de improcedência. Insurgência. Preliminar de cerceamento de defesa afastada. Inteligência do art. 357, §6º e §7º do CPC. Mérito. Acolhimento. Filiação socioafetiva que constitui modalidade de parentesco civil. Inteligência do art. 1.593 do CC. Princípio da afetividade jurídica que permite, conforme o entendimento do STJ, a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental. Reconhecimento que exige a necessidade de tratamento como se filho fosse e o conhecimento público dessa condição. Precedentes da Corte Superior. Hipótese dos autos em que a filiação socioafetiva está comprovada. Partes que tiveram relação materno-filial por 36 anos, após o falecimento da mãe biológica do autor e em decorrência da união estável mantida com seu pai. Elementos dos autos, tais como testemunhas, fotos e documentos, uníssonos no sentido de que as partes sempre se trataram como mãe e filho, de forma pública e notória, nutrindo afeto mútuo. Sentença reformada para reconhecer o vínculo de filiação socioafetiva entre as partes, determinando-se, em consequência, a inclusão do vínculo de filiação materna junto ao assento de nascimento do autor, sem prejuízo daqueles já registrados, bem assim as demais averbações pertinentes a este parentesco. Retificação do polo passivo para constar o espólio da falecida M.P. RECURSO PROVIDO, COM OBSERVAÇÃO.” (v. 35216). (TJSP; Apelação Cível nº 1006090-70.2019.8.26.0477; Rel. Desª. Viviani Nicolau, 3ª Câmara de Direito Privado, Foro de Praia Grande – 1ª Vara de Família e Sucessões, julgamento em 02/02/2021, registro em 02/02/2021) (grifo nosso).
[18] Vale acompanhar o caso da Pernambucanas, no qual se discute o reconhecimento socioafetivo de Anita Harley, principal acionista do grupo, em coma há anos. Uma ex-funcionária que morou com Anita por 20 anos, chamada Sônia, afirma ser esposa dela e, então, pediu reconhecimento de vínculo socioafetivo de Arthur Miceli, filho biológico de Sônia. Nada obstante, Cristine Rodrigues, assessora da presidência da Pernambucanas, foi instituída como responsável pela saúde de Anita por anos – inclusive tendo documento assinado pela acionista nesse sentido –, e alega que são falsas as afirmações de Sônia.
(Artigo publicado no site www.jota.info, em 21 de Julho de 2022).
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