É preciso muita cautela no aspecto tributário do planejamento patrimonial sucessório
Relembrando a mesma hipotética família mencionada no terceiro artigo desta série, vamos exemplificar com o seguinte patrimônio: “uma fazenda produtiva, com gado e plantio, uma importadora e distribuidora de peças automobilísticas, uma dezena de apartamentos alugados e investimentos monetários em bancos nacionais”. Os fundadores decidiram constituir uma holding patrimonial com um único imóvel e questionam: qual será a tributação? Aí o problema começa!
O primeiro passo é diferenciar o valor real dos bens, versus o valor venal lançando no ITR (Imposto sobre a Propriedade Territorial Rural), no caso de imóveis rurais, ou no IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), no caso de imóveis urbanos, pelos municípios, versus o valor lançado a título de custo de aquisição no Imposto de Renda. Para fins de exemplo, vamos nos ater aqui a um imóvel urbano, localizado no município de São Paulo, com os seguintes dados: valor real de R$ 1 milhão; valor venal lançado no IPTU de R$ 400 mil; e valor lançado no IR de R$ 100 mil.
O segundo passo é relembrar os três principais impostos incidentes no planejamento patrimonial sucessório: o ITBI (Imposto de Transmissão de Bens Imóveis), o ITCMD (Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação de Quaisquer Bens ou Direitos) e o IR, já tendo em mente que o ITBI[1] e o ITCMD[2] são impostos municipais e estaduais, respectivamente, e suas alíquotas variam de ente federativo para ente federativo.
Pois bem. Não haverá a incidência do ITBI na incorporação dos bens ao capital social de pessoa jurídica que não explore a atividade de compra e venda de imóveis, locação ou arrendamento. Ou seja, a Constituição Federal garantiu imunidade tributária desde que o bem a ser integralizado em pessoa jurídica seja utilizado para a exploração de atividade econômica. A intenção é clara: incentivar a livre iniciativa e o empreendedorismo[3]. Mas o legislador não considera que a passagem de imóvel para uma holding patrimonial com o objeto social de compra e venda, locação ou arrendamento seja empreendedorismo e por isto não concedeu a imunidade. Tenho as minhas dúvidas, mas a regra é clara. Caberá então, no nosso exemplo, questionar aos fundadores se eles venderão ou locarão o imóvel em questão? Se somente “ficar” dentro da holding patrimonial, sem nenhuma atividade econômica, não haverá a incidência de ITBI[4].
A base de cálculo do imposto de transmissão, se incidente, será o valor venal (R$ 400 mil) ou o valor real (R$ 1 milhão)[5]. Já a integralização do capital social poderá ser feita pelo valor de aquisição (R$ 100 mil).
E se o valor integralizado no capital social for menor do que o valor declarado do imóvel no negócio jurídico celebrado? Neste caso, o STF decidiu que haverá a incidência do ITBI na diferença entre o capital social e a reserva de capital[6] realizada pelos sócios[7], inobstante ambas serem destinadas ao patrimônio líquido da empresa e terem como objeto investimentos no negócio.
De outro giro, se os fundadores optarem por integralizar o capital social pelo valor real ou pelo valor venal, já pensando em uma futura venda do imóvel, por exemplo, haverá também a incidência do Imposto de Renda[8], pelo ganho de capital. O ganho de capital é a diferença positiva entre o valor de alienação (venda, por exemplo) de bens ou direitos e o respectivo custo de aquisição (compra, por exemplo)[9].
Aprofundando o nosso planejamento, os fundadores agora decidem doar a holding patrimonial para os seus filhos. A doação será das quotas (ou ações, se estivermos à frente de uma sociedade anônima) e não dos bens imóveis, e incidirá na operação o ITCMD[10] (o mesmo imposto é pago na doação da nua propriedade, na instituição e na extinção de usufruto, uso e habitação).
O imposto, como dito acima, é de competência estadual e a alíquota varia de ente federativo a ente federativo. Seguindo a premissa do nosso exemplo, mais uma vez, em São Paulo, a alíquota é de 4% sobre o valor da doação.
O valor da holding é igual ao valor do seu patrimônio contábil real[11], em geral menor do que o valor real dos bens. O valor de cada quota é igual à divisão do valor da holding pelo número de quotas constante no capital social. E o valor da participação societária (valor da doação) é igual à multiplicação do valor da quota pelo número de quotas que o sócio detenha na holding[12].
O caso ilustrativo acima demonstra a complexidade tributária e os possíveis caminhos no direcionamento do planejamento, sempre perseguindo a vontade dos fundadores. Se é verdade que o legislador pensou no desenho tributário do país com o objetivo de desenvolvimento econômico, ainda há muito trabalho a ser realizado.
O nó tributário implementado, ao que parece, “cirurgicamente” pelo nosso emaranhado de leis[13] e decisões sobre os mais diversos tributos, em especial aqui o ITBI, ITCMD e IR, é, por um lado, um alerta da falta de segurança jurídica, e por outro, indica a possibilidade de estudo e reflexões sobre o melhor caminho a ser tomado pelos fundadores para o futuro do seu patrimônio, sopesando o risco no planejamento e o custo financeiro para implementá-lo.
Resumindo, para desfazer o nó, muita cautela é necessária no aspecto tributário do planejamento patrimonial sucessório, analisando, com cuidado, caso a caso.
Para quem quiser saber mais, recomendo um passeio nos relatórios no Banco Mundial sobre a complexidade tributária brasileira comparada com outros países.
(Artigo publicado no site www.jota.info, em 26 de Maio de 2022).
[1] No município de São Paulo a alíquota é de 3%, em Belo Horizonte é de 3% e em Cuiabá é de 2%.
[2] A alíquota em São Paulo é de 4%, em Minas Gerais é de 5% e em Mato Grosso pode chegar a 8%, dependendo do patrimônio.
[3] É o caso da holding operacional.
[4] Artigo 156. Compete aos Municípios instituir impostos sobre: […] II – transmissão “inter vivos”, a qualquer título, por ato oneroso, de bens imóveis, por natureza ou acessão física, e de direitos reais sobre imóveis, exceto os de garantia, bem como cessão de direitos a sua aquisição; […] § 2º O imposto previsto no inciso II: I – não incide sobre a transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrente de fusão, incorporação, cisão ou extinção de pessoa jurídica, salvo se, nesses casos, a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil.
[5] Reexame necessário e Apelação – Mandado de Segurança – Base de cálculo do ITBI, nos termos da Lei Municipal nº 14.256/06 de São Paulo – Utilização pela Municipalidade do valor venal de referência – Inadmissibilidade – Afronta ao Princípio da legalidade, insculpido no artigo 150, I, da CF/88 – Violação do direito líquido e certo demonstrado – Julgamento pelo STJ do REsp nº 1.937.821/SP em fevereiro de 2022, Tema 1113, Tese: “Base de cálculo do ITBI, devendo corresponder ao valor da transação, que somente pode ser afastada pelo fisco mediante a regular instauração de processo administrativo próprio(artigo 148 do CTN) – Fato gerador que se dá com o registro do imóvel no CRI – Inteligência dos artigos 35 do CTN e 1.245 do CC – Atualização monetária do valor da base de cálculo devida – Sentença mantida para que o recolhimento do imposto seja baseado no valor da transação (que neste caso é igual ao do valor venal apurado para o IPTU), com observação quanto à correção monetária – Mantem-se a sentença em reexame necessário e nega-se provimento ao recurso do Município, com observação. (realce nosso) (Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP – Apelação/Remessa Necessária: APL 1018346-85.2021.8.26.0053 – Data do Julgamento – 17/05/2022)
[6] A Lei 6.404/76 disciplina: “Artigo 182 – A conta do capital social discriminará o montante subscrito e, por dedução, a parcela ainda não realizada. §1º Serão classificadas como reservas de capital as contas que registrarem: a) a contribuição do subscritor de ações que ultrapassar o valor nominal e a parte do preço de emissão das ações sem valor nominal que ultrapassar a importância destinada à formação do capital social, inclusive nos casos de conversão em ações de debêntures ou partes beneficiárias;”
[7] EMENTA. CONSTITUCIONAL E TRIBUTÁRIO. IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE BENS IMÓVEIS – ITBI. IMUNIDADE PREVISTA NO ART. 156, § 2º, I DA CONSTITUIÇÃO. APLICABILIDADE ATÉ O LIMITE DO CAPITAL SOCIAL A SER INTEGRALIZADO. RECURSO EXTRAORDINÁRIO IMPROVIDO. 1. A Constituição de 1988 imunizou a integralização do capital por meio de bens imóveis, não incidindo o ITBI sobre o valor do bem dado em pagamento do capital subscrito pelo sócio ou acionista da pessoa jurídica (artigo 156, § 2º,). 2. A norma não imuniza qualquer incorporação de bens ou direitos ao patrimônio da pessoa jurídica, mas exclusivamente o pagamento, em bens ou direitos, que o sócio faz para integralização do capital social subscrito. Portanto, sobre a diferença do valor dos bens imóveis que superar o capital subscrito a ser integralizado, incidirá a tributação pelo ITBI. 3. Recurso Extraordinário a que se nega provimento. Tema 796, fixada a seguinte tese de repercussão geral: “A imunidade em relação ao ITBI, prevista no inciso I do § 2º do artigo 156 da Constituição Federal, não alcança o valor dos bens que exceder o limite do capital social a ser integralizado. (realce nosso) (RECURSO EXTRAORDINÁRIO 796.376 SANTA CATARINA, RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO; 05/08/20).
Vale também conferir a seguinte decisão para que não haja margem para erros: “Agravo de Instrumento. Ação Anulatória de Débito. ITBI. Incorporação de imóveis ao capital social. Decisão que, em sede de tutela provisória, suspendeu a exigibilidade do crédito tributário por entender ser o caso de imunidade incondicionada (RE796376). Pretensão à reforma. Acolhimento. Presença de elementos suficientes para a formação de um juízo de probabilidade do direito, já que o caso em análise envolve questão diversa daquela que foi objeto do Tema 796 do STF, cuja tese foi firmada com base em fundamentos determinantes que não dizem respeito à incidência ou não do ITBI na transmissão de imóveis para fins de integralização de capital social. Decisão reformada. Recurso provido.” (realce nosso) (Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2213187-28.2021.8.26.0000 – Data do Julgamento – 17/12/2021)
[8] Artigo 153 CF. Compete à União instituir impostos sobre: […] III – renda e proventos de qualquer natureza;
[9] Se o bem for integralizado pelo valor real, teríamos como base de cálculo o valor de R$ 900.000,00 (novecentos mil reais) – ganho de capital -, a uma alíquota de 15% (sem contar deduções e/ou abatimentos por benfeitorias, por exemplo), resultando em um imposto a pagar de aproximadamente R$ 135.000,00 (cento e trinta e cinco mil reais).
[10] Artigo 155, da Constituição Federal. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre: I – Transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos.
[11] TRIBUTO ITCMD – Doação – Quotas – Capital Social – Valor patrimonial real – Impossibilidade – Valor patrimonial contábil – Possibilidade: Na doação de quotas sociais, é valido o uso do seu valor real contábil, não havendo previsão legal para que se utilize o seu valor patrimonial real. (realce nosso) (Tribunal de Justiça de São Paulo TJ-SP – Apelação/Remessa Necessária: APL 1004614-11.2021.8.26.0482 – Data do Julgamento – 06/04/2022);
[12] Vale pontuar que os Estados podem instituir isenção do ITCMD, o que realmente acontece para doações anuais de pequena monta (em São Paulo a transmissão por doação é isenta se o valor não ultrapassar 2.500 UFESPs (R$ 79.925,00)).
[13] Especificamente sobre matéria tributária, levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação mostrou que, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988, foram editadas mais de 443.000 normas. Destas, 36.483 são normas tributárias federais; 146.849 são estaduais e 259.904 são municipais. Esse total representa média de 2,21 normas tributárias por hora em um dia útil. (Estudo – Quantidade de Normas Editadas no Brasil.pdf – Google Drive) acesso em 24/05/22.
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