Para que existir o instituto da união estável se a legislação já disciplinou o casamento?
As famílias empresárias (ou não), após discutirem a constituição de holding patrimonial e/ou operacional, geralmente fazem duas perguntas, muito difíceis de responder, pois as variáveis são enormes:
em qual regime de bens meus filhos devem se casar?
minha nora (ou meu genro) herdará o meu patrimônio?
As relações familiares são marcadas por eventos (casamento, morte, nascimento do filho), expectativas, sucessos e fracassos. Cada família constrói a sua história baseada nas respostas dadas a esses marcos e com base em como encaram os desafios. Forças e fraquezas aparecerão em cada uma das narrativas.
Por que estou falando nisso?
Porque orientar o melhor regime de casamento para quem está fora do histórico familiar não deixa de ser fácil, ao menos ao dar a primeira resposta: separação total de bens[1]. Ora, amor é diferente de patrimônio. Me casarei com a pessoa e não (em tese) com o patrimônio dela.
Mas a resposta fica complicada quando o grande liquidificador das relações e sentimentos humanos começar a se mexer: a mistura dos ingredientes tais como a divisão de papéis dentro do seio familiar, o suporte na criação dos filhos e a dedicação ao negócio (mesmo que de longe), a divisão de recursos para o sustento dentro do núcleo familiar e da família como um todo; esses itens complicam demasiadamente o “racional”, sendo difícil chegar a uma resposta única! Será um grande “depende”!
Nesse passo, uma família que considera umbilical o trinômio “amor, patrimônio e a própria divisão de papéis” pode considerar o melhor regime patrimonial a comunhão parcial de bens[2], quiçá a total[3].
A construção da base familiar estará calcada na premissa de que o casal constrói melhor os seus valores e o seu patrimônio. É bem verdade que o casamento “estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges”[4], sendo ambos “responsáveis pelos encargos da família”[5], independentemente do regime de bens.
Não é fácil a decisão! Se houver divórcio, o conflito poderá ser muito maior, pois afora as questões atinentes aos filhos (pensão alimentícia, guarda e regime de visitas) ainda se discutirá a divisão do patrimônio, a depender do regime escolhido.
Mas, por outro lado, talvez seja a única forma do casal se sentir unido e o possível conflito, jamais desejado, acabar sendo posto em segundo plano.
De outro ângulo, é plenamente possível que os noivos estipulem através de pacto antenupcial as regras de direito patrimonial que regularão os seus bens[6]. Pouco difundida é a possibilidade de “misturar os regimes de bens”. Explico: os nubentes podem escolher o regime de separação de bens, mas, na convenção privada, baseada no princípio da autonomia privada das partes, disciplinar que o imóvel de residência do casal terá o regime da comunhão parcial de bens, por exemplo.
Assim, os nubentes podem escolher e decidir livremente sobre o melhor caminho para a sua vida patrimonial, conferindo segurança um ao outro.
O tema “patrimônio” possui outros reflexos sempre presentes nas reuniões sobre planejamento patrimonial sucessório. Destaco, abaixo, três.
O primeiro que vale um comentário é o famigerado contrato de namoro. Se não é vontade dos enamorados casar, mas o namorado ou a namorada querem se proteger de uma eventual imputação de existir união estável, valerá assinar o contrato de relacionamento amoroso. Ele é recomendável para dar tranquilidade ao relacionamento e a sua utilização cresceu muito na época da pandemia decorrente da Covid-19. Em minha opinião, triste o surgimento, crescimento e necessidade desse contrato, pois se era vontade de um dos namorados se casar (ou ter uma união estável) bastava exprimir esta vontade, mas como meio de proteção, sua assinatura pode ser imperiosa! Insisto: quem quer casar, casa!
O segundo instituto é a própria “união estável”. Prevista no artigo 1.723 do Código Civil[7], deveria ser abolida do sistema jurídico brasileiro, o que faria, consequentemente, desnecessário o contrato de namoro, bem como afastaria a discussão sobre o namoro qualificado, uma espécie de relacionamento “surgido” entre o namoro simples e a união estável.
Os tribunais vêm acolhendo a tese do namoro qualificado[8] justamente para não conferir diretos patrimoniais a quem não tinha o objetivo de constituir família, mas morava e dividia contas com seu namorado/sua namorada.
Observe-se que na união estável realizada por escritura pública os companheiros podem escolher o melhor regime de bens, sendo o legal o regime de comunhão parcial de bens.
Para que existir o instituto da união estável se a legislação já disciplinou o casamento? Partindo do princípio de que os nubentes são maiores, capazes e que se deve respeitar a autonomia privada[9] deles, seja no aspecto subjetivo de quererem estar juntos, seja no aspecto objetivo na celebração do casamento, o instituto da união estável somente serve para trazer insegurança aos casais e a possibilidade de evitar/enfrentar um “golpe patrimonial”. Mais uma vez, insisto: quem quer casar, casa!
O último ponto é novamente o pacto antenupcial. Ele pode, afora regulamentar questões patrimoniais, também conter cláusulas extrapatrimoniais[10], como são as de natureza existenciais, sendo proibido deixar uma das partes em situação de desigualdade ou dependência, restrinjam a liberdade ou violem o conceito aberto de dignidade da pessoal humana. São exemplos do que poderia estar nesse pacto: o nome da família e sua utilização, cuidados médicos, aparições públicas e declarações (em caso de famosos), exposição na mídia, quem lava a louça(?), métodos conceptivos, alimentos prévios, a possibilidade do negócio jurídico processual[11] etc.[12].
Com os inúmeros cuidados postos acima, a resposta à primeira pergunta foi um grande “depende”! Já para a resposta à segunda pergunta, caros leitores, vocês terão que aguardar o próximo artigo desta série.
(Artigo publicado no site www.jota.info, em 09 de Junho de 2022).
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[1] Art. 1.687. Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real.
[2] Art. 1.658. No regime de comunhão parcial, comunicam-se os bens que sobrevierem ao casal, na constância do casamento, com as exceções dos artigos seguintes.
[3] Art. 1.667. O regime de comunhão universal importa a comunicação de todos os bens presentes e futuros dos cônjuges e suas dívidas passivas, com as exceções do artigo seguinte.
[4] Art. 1.511. O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges.
[5] Art. 1.565. Pelo casamento, homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família.
[6] Art. 1.639. É lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver.
[7] Art. 1.723. É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família.
[8] “Na relação de namoro qualificado os namorados não assumem a condição de conviventes porque assim não desejam, são livres e desimpedidos, mas não tencionam naquele momento ou com aquela pessoa formar uma entidade familiar. Nem por isso vão querer se manter refugiados, já que buscam um no outro a companhia alheia para festas e viagens, acabam até conhecendo um a família do outro, posando para fotografias em festas, pernoitando um na casa do outro com frequência, ou seja, mantêm verdadeira convivência amorosa, porém, sem objetivo de constituir família” (STJ, REsp 1.263.015/RN, 3ª Turma, Rel. Min Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012, DJe 26/6/2012).
[9] Nas palavras de Francisco Amaral: “a autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão ‘autonomia da vontade’ tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real” (Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: 5ª Edição, Renovar, 2003, p. 347-348).
[10] Enunciado 635, da VIII Jornada de Direito Civil do CJF: “O pacto antenupcial e o contrato de convivência podem conter cláusulas existenciais, desde que estas não violem os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre os cônjuges e da solidariedade familiar”.
[11] Enunciado 24, do IBDFAM – Em pacto antenupcial ou contrato de convivência podem ser celebrados negócios jurídicos processuais.
[12] Confira as palavras de Conrado Paulino Rosa: “Em contrapartida, situações cotidianas, como, por exemplo, a definição do responsável por cozinhar e do responsável por lavar as roupas e as louças, podem ser pactuadas no pacto. Também é facultado aos nubentes pactuarem o interesse ou desinteresse pela constituição de prole, prazos e métodos para tal. Além disso, é viabilizada a pactuação de mudança de regime de bens no decorrer do casamento, bem como a prévia estipulação de alimentos em favor de um dos cônjuges” (Direito de Família Contemporâneo. 8. Ed. Salvador: JusPODVIM, 2021., p. 251).
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