Patente intersecção para o crescimento dos negócios no Brasil
A maior parte das empresas familiares, no Brasil, dedica-se à exploração da atividade econômica de maior representatividade no Produto Interno Bruto (PIB): o agronegócio[1]. O número de negócios que advém, direta ou indiretamente, do “agro” é incontável, com uma complexa e sofisticada rede de tráfego comercial.
Os players deste intenso e pujante universo[2], que movimenta mais de R$ 2,38 trilhões por ano[3], são desde pequenos produtores rurais até grandes indústrias de defensivos agrícolas, utilizando tecnologia de ponta e incentivando, nesse sistema, constantemente, startups ligadas ao setor, as “agrotechs”.
Neste artigo, vou focar, novamente, na d. Maria, mãe de sete filhos, detentora de duas fazendas produtivas, lúcida e com saúde, no auge dos seus 94 anos. No artigo anterior, o foco era a sua sucessão, neste são alguns instrumentos societários e contratuais relativos ao agronegócio, que podem ajudar na busca do planejamento patrimonial e sucessório, bem como na eficiência tributária.
A ideia central é que após a constituição das holdings patrimonial e operacional, as empresas de d. Maria, agora detentoras das fazendas por meio da integralização do capital social (conferência dos bens imóveis ao capital social)[4], contratem arrendamento ou parceria rural[5] com ela e com os seus filhos na pessoa física. Estes serão produtores rurais e pagarão aluguel ou parte da produção, a depender do instrumento contratual, para as empresas “donas” da terra.
O Estatuto da Terra (Lei 4.504/64) estabelece dois contratos agrícolas típicos (prescritos em lei): o arrendamento rural e a parceria rural.
O primeiro é, segundo o artigo 3º, do Estatuto da Terra[6]: “Arrendamento rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de imóvel rural, parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, outros bens, benfeitorias e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais da lei”.
Já o segundo, prescrito no artigo 4º, da mesma lei[7]: “Parceria rural é o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso específico de imóvel rural, de parte ou partes do mesmo, incluindo, ou não, benfeitorias, outros bens e ou facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa vegetal ou mista; ou lhe entregue animais para cria, recria, invernagem, engorda ou extração de matérias-primas de origem animal, mediante partilha de riscos de caso fortuito e da força maior do empreendimento rural, e dos frutos, produtos ou lucros havidos nas proporções que estipularem, observados os limites percentuais da lei”.
Observa-se que no arrendamento[8], o risco da exploração da atividade econômica é somente do arrendante, que deverá pagar retribuição ou aluguel pelo uso da terra. Já na parceria[9], há partilha do risco do resultado econômico objeto da atividade agrária exercida.
E, como asseverado no exemplo, a família de d. Maria explorará a atividade econômica como produtores rurais, na pessoa física. Ou seja, serão os arrendantes ou parceiros na outra ponta do contrato, beneficiando-se das regras tributárias editadas para o produtor rural. No caso ilustrativo de d. Maria, serão oito produtores rurais (sete filhos mais ela) podendo dividir receitas e despesas.
A eficiência tributária, lógico, somente poderá ser analisada caso a caso e a depender da atividade, mas é intuitiva caso haja ativos e passivos, com o lançamento correto de despesas da atividade agrária, pagamento do arrendamento e da parceria, financiamentos bancários, tudo somado aos regimes tributários existentes[10]. A holding patrimonial, para aprofundar, poderá receber o aluguel advindo do arrendamento e distribuir o valor como dividendos, que são, atualmente, isentos de tributação, aos sócios.
Afora a formatação societária e contratual, vale destacar mais dois pontos importantes e atuais sobre as operações no agro:
No dia 7 de abril de 2020, a Medida Provisória nº 897/2019 (MP do Agro) foi convertida na Lei do Agro (Lei 13.986/2020), a qual é tida como um divisor de águas, vez que visa a facilitar a tomada de crédito rural e o financiamento de dívidas dos produtores rurais, tudo para o desenvolvimento do agronegócio no país, com maior segurança. A Lei do Agro estimula a redução das taxas de juros e maior acesso às linhas de crédito rural, bem como a ampliação e melhoria das garantias oferecidas em operações de crédito. Importa citar, inicialmente, os quatro maiores pontos de atenção introduzidos e/ou consolidados pela Lei do Agro: (i) o Fundo Garantidor Solidário (FGS), (ii) o Patrimônio Rural em Afetação, (iii) a Cédula de Imobiliária Rural (CIR), e (iv) a Cédula de Produto Rural (CPR). Somente para deixar claro, a holding poderá emitir uma CPR ou, por exemplo, constituir um patrimônio rural em afetação.
A possibilidade de o produtor rural requerer recuperação judicial. A discussão se o produtor rural pode ou não se utilizar do instituto já foi pacificada pelo STJ[11] e, inclusive, conta com enunciados da III Jornada de Direito Comercial[12]. Pontua-se que a recuperação judicial visa à continuidade da atividade econômica, com base nos princípios da preservação da empresa e de sua função social.
No agro, como se percebeu, afora os instrumentos societários e contratuais explicados nos últimos artigos desta série, é possível “completar” o planejamento patrimonial sucessório com os contratos rurais e com os planejamentos tributários conferidos aos produtores rurais, sem se esquecer da nova Lei do Agro e da possibilidade de requerer recuperação judicial.
Todos esses institutos, separada ou conjuntamente, trazem segurança e previsibilidade aos agentes econômicos para o ramo que mais cresce em importância na economia nacional e, certamente, trazem segurança para os negócios e planejamentos de d. Maria.
(Artigo publicado no site www.jota.info, em 07 de Julho de 2022).
*
Para quem quiser saber mais, recomendo desde já a leitura do artigo “10 startups do agronegócio para ficar de olho”, escrito por Renato Seraphim.
[1] A KPMG possui interessante pesquisa sobre as empresas familiares, apontando que: (i) elas se encontram em sua maioria no agronegócio (19%) e atacado e varejo (17%); (ii) o maior atributo para a escolha do sucessor é o conhecimento do negócio (58%), não importando somente um curso internacional (3%); (iii) 64% dos entrevistados, no ano de 2020, optaram por contratar um consultor externo para auxiliar na introdução de práticas de governança familiar e sucessão, um crescimento de 5% se comparado ao ano de 2016. (KPMG) Disponível em: https://assets.kpmg/content/dam/kpmg/br/pdf/2021/02/Retratos-Familia.pdf Último acesso em: 05 julho. 2022.
[2] “The sum of all operations involved in manufacture and distribution of farm supplies, production operations on the farm, and the storage, processing, and distribution of farm commodities”. Tradução livre: “A soma de todas as operações envolvidas no fabrico e distribuição de produtos agrícolas, operações de produção na exploração, e armazenamento, processamento e distribuição de produtos agrícolas”. (Davis, J. H., & Goldberg, R. A. A. (1957). Concept of agribusiness. pp. 136. Boston: Division of Research, Graduate School of Business Administration, Harvard University)
[3] Com o desempenho do PIB agregado do agronegócio em 2021, o setor alcançou participação de 27,4% no PIB brasileiro, a maior desde 2004 (quando foi de 27,53%). [aproximadamente 2,38 trilhões de reais]. Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/upload/kceditor/files/Cepea_CNA_PIB_JAn_Dez_2021_Mar%C3%A7o2022.pdf Último acesso em: 05 julho. 2022
[4] A depender do planejamento realizado.
[5] Por contrato agrário devem ser entendidas todas as formas de acordo de vontade que se celebrem, segundo a lei, para o fim de adquirir, resguardar, modificar ou extinguir direitos vinculados à produtividade da terra. (ALVARENGA, Octávio Mello. Curso de direito agrário: contratos agrários. Brasília: Fund. Petrônio Portella, 1982. p. 9.)
[6] O arrendamento rural é uma espécie de locatio rei e se conceitua como o contrato agrário pelo qual uma pessoa se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo do imóvel rural, parte ou partes dele, incluindo ou não outros bens, benfeitorias ou outras facilidades, com o objetivo de nele ser exercida atividade de exploração agrícola, pecuária, agroindustrial, extrativa ou mista, mediante certa retribuição ou aluguel, observados os limites percentuais do ET (Regulamento, art. 3o). (OPITZ, Silvia C.B; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrário. 11ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. p. 385.)
[7] Por isso, pode-se agora dar uma definição do instituto, dizendo que a parceria, em geral, é um contrato oneroso, pelo qual uma ou mais pessoas – sendo uma ou várias delas proprietárias de um imóvel rural – admitem que outra ou outras delas ocupem dito imóvel, para fins rurais, ou seja, exploração extrativa, agrícola, pecuária ou agroindustrial, por certo tempo, mediante a distribuição convencional dos frutos produzidos, observadas as restrições impostas no art. 96, VI, da Lei n. 4.504/64. (Regulamento, art. 4o, Dec. n. 59.566/66 e art. 96, § 1o, do ET, nova redação da Lei n. 11.443/2007). (OPITZ, Silvia C.B; OPITZ, Oswaldo. Curso completo de direito agrário. 11ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2019. p. 433.)
[8] Interessante decisão sobre a morte da arrendadora/usufrutuária: “RECURSO ESPECIAL. CIVIL. AÇÃO DE REINTEGRAÇÃO DE POSSE CUMULADA COM PEDIDO DE RESCISÃO CONTRATUAL E DE COBRANÇA. USUFRUTO E ARRENDAMENTO RURAL. MORTE DA USUFRUTUÁRIA DURANTE O CONTRATO DE ARRENDAMENTO. EXTINÇÃO DO DIREITO REAL. INDISPENSÁVEL A AVERBAÇÃO DO CANCELAMENTO DO USUFRUTO NO CARTÓRIO IMOBILIÁRIO. EFEITO CONSTITUTIVO. PRECARIEDADE DA POSSE DOS SUCESSORES. INJUSTIÇA DA POSSE. VÍCIO QUE SOMENTE SE VERIFICA PERANTE A VÍTIMA DA AGRESSÃO POSSESSÓRIA. DIVERSIDADE DE RELAÇÕES JURÍDICAS. LEGITIMIDADE ATIVA DO ESPÓLIO DA ARRENDADORA/USUFRUTUÁRIA FUNDADA NO CONTRATO DE ARRENDAMENTO. RECONHECIMENTO. RECURSO ESPECIAL DESPROVIDO. […] Portanto, a morte da arrendadora/usufrutuária (causa de extinção do usufruto, nos termos do art. 1.410, I, do CC) durante a vigência do contrato de arrendamento rural, sem a respectiva restituição ou reivindicação possessória pelo proprietário, tornando precária e injusta a posse exercida pelos sucessores daquela, não constitui óbice ao exercício dos direitos provenientes do contrato de arrendamento rural, no interregno da efetiva posse, pelo espólio da usufrutuária perante o terceiro arrendatário, porquanto diversas e autônomas as relações jurídicas de direito material de usufruto e de arrendamento.” (REsp n. 1.758.946/SP, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 8/6/2021, DJe de 11/6/2021.)
[9] Interessante decisão sobre a possibilidade de penhora dos créditos advindos de parceria rural: “AGRAVO DE INSTRUMENTO – EXECUÇÃO –– Penhora de créditos decorrentes de contrato de parceria rural do executado com outra empresa – Penhorabilidade – Medida prevista no art. 867 do CPC – Ausência de comprovação de se tratar de fonte única de renda – Constrição mantida – Recurso desprovido. JUSTIÇA GRATUITA – Indicativos da possibilidade de se pagar custas do processo e honorários advocatícios – Indeferimento mantido – Recurso desprovido, com determinação, revogado efeito suspensivo. […] a penhora de créditos decorrentes do contrato de parceria do executado, nos termos do art. 867 do CPC […] não se confunde com a penhora de salários, vencimentos, etc. (art. 833, IV, do CPC).” (TJSP; Agravo de Instrumento 2075796-94.2022.8.26.0000; Relator (a): Vicentini Barroso; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Privado; Foro de Descalvado – 1ª Vara; Data do Julgamento: 15/06/2022; Data de Registro: 15/06/2022)
[10] Na pessoa física, a título de exemplo, o produtor rural poderá elaborar um livro caixa e às alíquotas progressivas serão de 7,5 a 27,5%; por outro lado, se não elaborado o livro caixa, haverá incidência do imposto sobre 20% da receita bruta (art. 22, § 2º, da Instrução Normativa SRF nº 83 e art. 5º da Lei 8.023/1990).
[11] AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL. EMPRESÁRIO RURAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. JUÍZO UNIVERSAL. STAY PERIOD. PEDIDO DE RESTITUIÇÃO DE GRÃOS ARRESTADOS. PENHOR. DIREITO REAL DE GARANTIA. COMPETÊNCIA PARA DEFINIÇÃO DA ESSENCIALIDADE DO BEM. 1. Após obter o registro e passar ao regime empresarial, fazendo jus a tratamento diferenciado, simplificado e favorecido quanto à inscrição e aos efeitos desta decorrentes (CC, arts. 970 e 971), adquire o produtor rural a condição de procedibilidade para requerer recuperação judicial, com base no art. 48 da Lei 11.101/2005 (LRF), bastando que comprove, no momento do pedido, que explora regularmente a atividade rural há mais de 2 (dois) anos. (AgInt nos EDcl no REsp n. 1.954.239/MT, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 25/4/2022, DJe de 27/4/2022)
[12] Há, ainda sobre o tema, os enunciados 96 e 97 da III Jornada de Direito Comercial, pronunciando que: ENUNCIADO 96 — A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis ENUNCIADO 97 — O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.
Comments