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Planejamento patrimonial sucessório e a governança corporativa

Como desenvolver uma cultura organizacional eficiente que respeite os anseios familiares?



Para fechar a série sobre planejamento patrimonial sucessório, me pareceu adequado, no último artigo, aprofundarmos o tema da governança corporativa dentro das empresas familiares.


Não é um tema fácil, pois “cada cabeça, uma sentença”, e diante do universo de empresas familiares cada uma tem sua cultura organizacional, sua forma de divisão de poderes, deveres e responsabilidades, com feições diferentes.


Algumas recomendações podem parecer óbvias para quem “olha de fora”: dividir papéis, respeitar o perfil de cada membro da família, remuneração pelo trabalho ser diferenciada da distribuição de lucros e que cada trabalho merece uma remuneração, possuindo responsabilidades diferentes e assim por diante.


Em muitas reuniões, como as com a d. Maria[1] e o sr. Jorge[2], a pergunta sobre o que é a governança e como implementá-la aparecem, mas muitas vezes a palavra é mais sedutora do que a vontade de implementar regras concretas. E, não raro, as regras escritas — em acordo de sócios e protocolos familiares — não são cumpridas e viram letra-morta.


Não adianta passar horas a fio elaborando complexos documentos sem que depois haja o comprometimento da família em, mais do que os cumpri-los, respeitá-los como a vontade emanada do seio familiar.


Inúmeras vezes sugeri: “Comam o mingau pela beirada”; “comecem com uma reunião mensal, sem formalidades e aos poucos vocês chegarão a reuniões organizadas, pautadas, documentadas, na periodicidade necessária, para os negócios e desejos da família”. Não é fácil. Ao primeiro sinal de estresse, as reuniões desaparecem. A intrincada equação entre patrimônio, poder e sentimento não é fácil e qualquer deslize pode acabar com o planejamento.


Mas o que é governança, em uma palavra? Como traduzir este conceito que tem um sentido enorme e pode englobar desde regras e condutas engessadas até movimentos simples, visando à perpetuidade da empresa?


Na minha opinião, a palavra que melhor traduz governança é “transparência”. Se na estrutura familiar são “transparentes” os deveres, as responsabilidades e as obrigações de cada membro, tudo fica mais fácil. Se é “transparente” a gestão dos recursos e o destino deles, tudo fica mais fácil. Se é “transparente” o que os fundadores desejam, tudo fica mais fácil.


Observe-se: o importante aqui é que todos conheçam seus papéis e alinhem dentro da estrutura da família “expectativas e realidades”, “desejos e reais possibilidades”. A transparência não é só de relatórios e números, mas sim subjetiva e profunda, e no limite, quiçá utópico, de todos os quereres dos fundadores e da família.


Lógico que seguir alguns postulados ajudam. A governança corporativa é, segundo o IBGC[3], o sistema pelo qual as empresas e demais organizações são dirigidas, monitoradas e incentivadas, envolvendo os relacionamentos entre sócios, conselho de administração, diretoria, órgãos de fiscalização e controle e demais partes interessadas. Isto posto, há quatro princípios básicos da governança corporativa, quais sejam: transparência[4], equidade[5], prestação de contas (accountability)[6] e responsabilidade corporativa[7].


Não obstante as regras de governança corporativa, é salutar observar a vontade dos fundadores com relação ao modo como será conduzida a empresa familiar, deixando-os com mais liberdade na condução da sociedade ou recebendo maiores lucros, por exemplo. Para tanto, têm-se os instrumentos de voto plural[8] e da ação superpreferencial, respectivamente, de forma que na primeira opção o fundador (ou qualquer outro membro da família) poderá ter o controle da sociedade com um menor número de ações ordinárias[9][10] (poder político), e na segunda opção o fundador (ou qualquer outro membro da família) poderá receber lucros maiores do que os demais acionistas (direitos econômicos), garantindo, por exemplo, sua aposentadoria.


Deixar confortáveis as vontades e os anseios dos fundadores e da família, respeitar os princípios de governança corporativa e os basilares de Direito Societário, como a preservação da empresa e de sua função social, certamente exigirá muito trabalho e reflexões, sendo, contudo, o mais importante, lembrar que cada caso é um caso, mas o objetivo final é sempre o mesmo: a perpetuidade do patrimônio e da empresa.


Para me despedir desta série, desde já agradecendo a todos os caros leitores, deixo a sugestão de que a governança proteja, em uma empresa familiar, o amor e o afeto, não somente o patrimônio!

*

Para quem quiser saber mais, recomendo a leitura do antigo artigo 1.338 do Código Civil de 1916, que tratava da gestão de negócios e é somente nele que aparecia o termo “amor”. As coisas evoluíram desde então, embora no Código Civil de 2002 nem surja essa palavra.

[3] IBGC – INSTITUTO BRASILEIRO DE GOVERNANÇA CORPORATIVA. Código das melhores práticas de governança corporativa. São Paulo: IBGC, 2009.

[4] Transparência – Consiste no desejo de disponibilizar para as partes interessadas as informações que sejam de seu interesse e não apenas aquelas impostas por disposições de leis ou regulamentos. Não deve restringir-se ao desempenho econômico-financeiro, contemplando também os demais fatores (inclusive intangíveis) que norteiam a ação gerencial e que conduzem à preservação e à otimização do valor da organização.

[5] Equidade – Caracteriza-se pelo tratamento justo e isonômico de todos os sócios e demais partes interessadas (stakeholders), levando em consideração seus direitos, deveres, necessidades, interesses e expectativas.

[6] Prestação de contas (accountability) – Os agentes de governança devem prestar contas de sua atuação, de modo claro, conciso, compreensível e tempestivo, assumindo integralmente as consequências de seus atos e omissões e atuando com diligência e responsabilidade no âmbito dos seus papéis.

[7] Responsabilidade corporativa – Os agentes de governança devem zelar pela viabilidade econômico-financeira das organizações, reduzir as externalidades negativas de seus negócios e suas operações e aumentar as positivas, levando em consideração, no seu modelo de negócios, os diversos capitais (financeiro, manufaturado, intelectual, humano, social, ambiental, reputacional etc) no curto, médio e longo prazos.

[8] “[…] ações superdotadas, vale dizer, de ações que, sob o aspecto político, podem ter até o décuplo do poder decisório das demais ações. Tais ações permitirão controlar a sociedade com uma participação de capital relativamente irrisória.” (BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito societário. 19. ed., rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2021.)

[9] Art. 16, LSA. As ações ordinárias de companhia fechada poderão ser de classes diversas, em função de: […] IV – atribuição de voto plural a uma ou mais classes de ações, observados o limite e as condições dispostos no art. 110-A desta Lei.

[10] Art. 110-A. É admitida a criação de uma ou mais classes de ações ordinárias com atribuição de voto plural, não superior a 10 (dez) votos por ação ordinária: […]


(Artigo publicado no site www.jota.info, em 04 de Agosto de 2022).

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